Por: Barnabé Lucas Ncomo
Se do livro “Eduardo Mondlane – um homem a abater” se pode colher interessantes informações na matéria de ajuizamentos do enredo que vitimou Eduardo Mondlane naquela manhã de 3 de Fevereiro de 1969 em Dar-es-Salam, o mesmo não se pode dizer das declarações do seu autor estampadas no SAVANA transacto. Na queda à eventual mordomia duma hospedagem VIP em Maputo o Presidente da Comissão de Desclassificação do Ministério dos Negócios Estrangeiros português, e investigador sénior no Instituto do Oriente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas de Portugal, ressona uma cantiga que criou vómitos em muitos moçambicanos por demais cansativa e enjoativa que é, pois passam agora exactamente 40 anos que essa cantiga serve de estandarte de sobrevivência moral de quem ocultou, embruteceu, matou, e teima em fazer da maioria dos cidadãos de Moçambique uns parvos.
Que Uria Simango tenha algum dia dito ao senhor Duarte de Jesus que era um maoista, duvidamos. Mas não duvidamos que o douto pesquisador tenha afirmado ao SAVANA que “Simango era um homem anti-branco”; que “nunca gostou que Mondlane metesse brancos na Frelimo” e que “Mondlane tinha tido grandes estudos, enquanto Simango dizia-se maoista sem sequer saber ao certo o que é isto”!
Não vemos nenhuma grande descoberta nisso, senão o ressonar duma malícia já conhecida!
PIDE
Para quem serviu fielmente um regime opressor no Estado Novo, desde 1960, tendo até, em nome de Salazar, escalado algumas capitais do mundo, não espanta que Duarte de Jesus entenda que o acusar a PIDE no enredo que vitimou Mondlane não passa duma atitude simplista. Como académico que é, espanta sim que não encontre o mesmo simplismo em ressonâncias tais como “Uria Simango não gostava nada de Mondlane”; “era um tipo racista”, que a sua boca reproduz.
Não há dúvidas que a PIDE tinha, eventualmente, contactos no seio da Frelimo, mas não cremos que ao nível das estruturas máximas. Provam-no a fragilidade das informações obtidas por essa polícia. Tais informações podem ser facilmente consultadas na Torre de Tombo em Portugal. Duarte de Jesus tem-nas perto de si.
A existir uma extrema-direita em Portugal que contestava Marcelo Caetano, como, de forma igualmente simplista, procura fazer crer o nosso ilustre visitante, acaba-se numa ridícula secundarização do papel desempenhado por uma extrema-esquerda bem conhecida em Portugal, que no derrube do regime salazarista de Caetano não logrou dominar o poder político em Portugal apenas por graça de um despertar imediato da social-democracia naquele país ibérico. Que se saiba, Duarte de Jesus não pertencia ao grupo dos que lutaram contra Salazar e Caetano.
O Dr. Duarte de Jesus foi embaixador durante o regime de Salazar. Defendia a linha do Ministério dos Negócios estrangeiros salazarista, com Franco Nogueira como Ministro. Foi do Ministério dos Negócios Estrangeiros português a que pertencia o ilustre Doutor de Jesus que se emitiu um comunicado oficial a dizer precisamente que Mondlane fora vítima de disputas maoistas, cubanas e soviéticas no seio da Frelimo. Os diplomatas, especialmente os que serviram o salazarismo/marcelismo apareceriam depois do 25 de Abril como pessoas progressistas. Não dizemos com isso que o então jovem Duarte de Jesus não fosse um homem de ideias avançadas, mas, na essência, o regime, é que ditava as regras. O que Jesus pensa ou idealiza não corresponde a linha/orientação final decidida pelas altas esferas (Salazar e depois Caetano). O Ministério dos Negócios Estrangeiros era, sem dúvidas, um factor importante, mas não determinava a orientação final do regime. Nem esse era o estilo do salazarismo.
É estranho que o douto Dr. José Duarte de Jesus entenda hoje que pode continuar a “intoxicar” os moçambicanos tal e qual certamente o fazia em tempos em que vigoravam os propósitos do império que um dia defendeu. O querer que se acredite que se alguém da PIDE colaborou na morte de Mondlane fê-lo por livre e espontânea vontade, e não por ordens emanadas da António Maria Cardoso ou do palácio de Belém, é, em si, um insulto a inteligência dos moçambicanos. Trata-se de uma atitude que em tudo cheira a aliança entre dois opressores de ontem (regime colonial português e Frelimo) numa estranha tentativa de lavar a imagem nos dois lados de quem matou e brutalizou, pois a semelhança nos procedimentos é ilustrativo. No desespero da causa, nos nossos dias, em Moçambique procura-se agora atribuir a responsabilidade de assassinatos programados nos corredores do poder em Maputo aos guardas prisionais lá no norte ou, simplesmente, a um “camarada nosso que agiu fora das regras estabelecidas”.
AGINTER PRESS
A haver um envolvimento da Aginter Press no assassinato de Mondlane, de forma nenhuma se exclui a iniciativa do regime colonial e da sua polícia política, a PIDE. Na verdade, longe do que afirma Duarte de Jesus, à Dar-es-Salam deslocou-se apenas um único agente da Aginter Press, Robert Lorey, e não “dois mercenários”. Ia, Lorey, com a missão de pôr a liderança da Frelimo em contradição, isto é, “intoxicar”. E fê-lo com mestria. Lorey permaneceu na capital tanzaniana pouco mais de três meses (de 5 de Junho de 1968 a 5 de Outubro de 1969), numa missão secreta então codificada de “Zona Leste” e não “INTOX Simango contra Mondlane ou INTOX Simango contra dos Santos”.
Em 1978, numa tentativa de dar prosseguimento a sanha de “intoxicação” iniciada por Lorey em Dar-es-Salam, Frederic Laurent e Nina Sutton publicavam, no L’ Orchestre Noir de Paris, um trabalho intitulado “The assassination of Eduardo Mondlane” cujo conteúdo, então baseado no relatório de Leroy, em nada demonstra com exactidão o que Duarte de Jesus hoje afirma.
Embora devidamente identificada a natureza da missão de Lorey em Dar-es-Salam (criar desacordos no seio da FRELIMO) o ilustre autor de “Eduardo Mondlane-um homem a abater” peca por querer passar certificados de incompetência a quem lhe precedeu na sanha de desinformação em que pretende erguer o seu pedestal. Na verdade, os co-autores do “The assassination of Eduardo Mondlane” (Frederic Laurent e Nina Sutton) não fazem alusão ao “precioso” dado que só a lupa do bom do senhor Duarte de Jesus viu: “INTOX Simango contra Mondlane, INTOX Simango contra dos Santos”.
O relatório da Agenter Press que serviu de base para o trabalho de Laurent e Sutton consta dos arquivos dos Serviços Secretos Italianos (SDCI). Desafiamos o Presidente da Comissão de Desclassificação do Ministério dos Negócios Estrangeiros português, Dr. Duarte de Jesus, a apresentar-nos uma cópia autenticada do documento que alude, pois, em relatório sobre a sua actividade em Dar-es-Salam, Lorey jamais afirmou que esteve tête-à-tête com Uria Simango. Reporta apenas sobre os contactos que estabeleceu com Eduardo Mondlane, dos Santos, Chissano, Coloma, Rebelo, Samora Machel, Lázaro Nkavandame e Mateus Gwengere, pessoas que afirma ter devidamente “intoxicado”. O posto cimeiro que Simango ocupava na Frelimo não passaria despercebido a ponto de Leroy não arrolá-lo na lista das figuras cimeiras da Frelimo que “intoxicou” durante a sua permanência em Dar-es-Salam.
E não deixa de ser espantosa uma outra afirmação do senhor Duarte de Jesus:
Conhecida a inclinação direita-extremista que caracterizava a Aginter Press e seus membros, de Jesus afirma ao SAVANA que o chefe dessa organização, senhor Ives Guerin Serrac, era “um homem da extrema-esquerda marxista-leninista”. Tendo em conta os ganhos duma bem conhecida ala que viria a impor exactamente essa linha política, tanto no movimento em luta (depois da morte de Mondlane), como em Moçambique, após a proclamação da independência nacional, a afirmação de Duarte de Jesus conduz a outros raciocínios, muito lógicos.
O “SEBASTIANISMO” DE DUARTE DE JESUS
Pelo que tudo indica, Duarte de Jesus sofre dum “sebastianismo intestinal”, uma conhecida fantasia portuguesa que acalentava esperanças de que o Rei Sebastião um dia havia de voltar de Marrocos onde havia ido em expedição contra os mouros. Sebastião morreu (ou foi capturado, sabe-se lá) em Alcácer Quibir. Como na mente dos “sebastianistas” o tempo pára, o Rei Sebastião tinha de estar vivo uns bons anos ou séculos depois, pois ainda era demasiado jovem quando foi a Marrocos tratar da saúde ao Al Qaeda da altura. E dado que a herança genética caracteriza a “portugalidade sebastianista”, o autor do “Eduardo Mondlane-Um homem a abater”, acalenta então a esperança de apanhar em qualquer esquina por aí um Casimiro Monteiro, para lhe espremer e dele saber “como foi aquilo de armadilhar uma bomba para o meu amigo Mondlane”!
Duarte de Jesus afirma na entrevista ao SAVANA que “(…). Monteiro depois fugiu para a África do Sul onde veio a “morrer”. Os ingleses foram ao seu túmulo, escavaram e não encontraram cadáver nenhum. Isso significa que pode estar vivo”! Ora, isto é um insulto a inteligência dos homens e a memória dum morto. Quererá de Jesus convencer-nos de que a escavação ao túmulo de Monteiro ocorreu secretamente na calada da noite, longe de suspeitas de profanação por parte das autoridades sul-africanas? Pois não explica, o douto investigador, o que pretendia a coroa britânica fazer com o que restava dum Casimiro Monteiro morto, a ponto de duvidar da autenticidade de óbito passado por uma autoridade dum país como o é a África do Sul, e solicitar uma exumação!
URIA SIMANGO E KAVANDAME
A simplicidade com que Duarte de Jesus aborda a questão Simango e Nkavandame na entrevista ilustra uma manifesta intenção: manter no castigo eterno a memória destes homens. E fá-lo ao serviço duma amizade que procura forjar com quem matou fora dos tribunais. O caso Kavandame não foi tão simples como se imagina. Não corresponde a verdade a afirmação segundo a qual “Lazaro Kavandame trabalhava para Portugal e até chegou a trabalhar para a rádio portuguesa”. Duarte de Jesus vende-nos a ideia de que desde sempre Kavandame havia-se infiltrado na Frelimo ao serviço dos portugueses. Na verdade, depois da fuga em Março de 1969, kavandame passou a estar sob alçada de Portugal e pouco podia fazer, senão pactuar com o jogo dos portugueses. De resto, como já o havíamos escrito, depois da sua expulsão em Janeiro de 1970, Kavandame achava que a Frelimo não era nada mais que uma corja de bandidos, e receava ser capturado por essa força e ser morto no interior de Moçambique como o era a “tradição e costume” no movimento. Ele tinha uma agenda política, e entre outras coisas tinha seguidores que vieram com ele, incluindo forças aliadas a ele. Um numeroso grupo que seguiu-o depois da fuga em Março de 1969 foi alvo de um ataque da Força Aérea Portuguesa que, por falta de coordenação com quem estava a tratar do dossier kavandame, julgou tratar-se de um grupo da Frelimo. Parece-nos que tudo isto que não se enquadra no âmbito das capacidades investigadoras do ilustre diplomata salazarista!
Na tentativa de agradar os seus hospedeiros em Maputo, José Duarte de Jesus acabou por despir a capa de académico/investigador que trazia, mergulhando no manto de candidato a membro sénior duma organização política que em tudo se assemelha a uma “Irmandade Maçónica”, onde aos iniciados se exige juramentos de manutenção de segredos perante “Soberanos Comendadores”, bebendo-se vinho carmesim ou sangue servido em taças feitas de crânios humanos.
Esperamos então que de Jesus ocupe dignamente um merecido lugar na “Irmandade” que escolheu, e que finalmente lhe sejam abertos os baús dos grandes segredos, mormente aquele em que repousa o documento que almeja pôr os olhos em cima, isto é, o relatório da Interpol sobre a morte de Mondlane. A nós, os “plebeus”, disseram que uma cópia desse tesouro repousa no fundo do oceano Índico, exactamente no porto de Dar-es-Salam. A cópia que Uria Simango possuía, na qualidade de Vice-presidente e herdeiro político de Mondlane na Frente de Libertação de Moçambique, foi-lhe arrancado à força no momento da confusão em Dar-es-Salam, exactamente para que Simango não tornasse público o seu conteúdo. Temia-se que o mundo, e particularmente os combatentes soubessem em detalhe o que se passou. A hipótese de ser a mesma cópia que entre outros documentos caiu no mar aquando do embarque dos arquivos da Frelimo no porto de Dar-es-Salam não se põe de parte. Explicamo-nos:
Após a morte de Mondlane, uma vez que Uria Simango era o presidente em exercício da Frelimo, era natural que fosse com ele que as autoridades tanzanianas tratassem da questão da investigação do caso do assassinato do presidente, pois era a Frelimo a mais interessada em saber quem matou o seu presidente. Nesse ínterim, a Frelimo era superiormente representada por Uria Simango. Assim, tanto o director da CID tanzaniana, como outros, punham-no ao par das investigações. Os relatórios, tanto do CID como da Interpol seriam-lhe entregues pelas autoridades tanzanianas. Simango leu-os, tendo-os perdido na disputa que se seguiu, quando outros se aperceberam que o “velho” podia pôr a boca no trombone.
SAVANA - 09.07.2010
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